A respeito do tema, Miguel Kfouri Neto
– Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, e um dos maiores expoentes do
Direito Médico nacional – diz em sua obra Responsabilidade Civil do Médico [4]:
“Não há dúvida que a cirurgia plástica integra-se normalmente ao universo do
tratamento médico e não deve ser considerada uma “cirurgia de luxo” ou mero
capricho de quem a ela se submete”. Dificilmente um paciente busca a cirurgia
estética com absoluta leviandade e sem real necessidade, ao menos de ordem
psíquica. Para ele, a solução dessa imperfeição física assume um significado
relevante no âmbito de sua psique – daí se pode falar, ainda que em termos
brandos, como afirma Avecone – de “Estado Patológico”.Mais adiante, continua:
"Em qualquer situação, também ao cirurgião plástico é possível demonstrar
a interferência – no desencadeamento do resultado danoso – de fatores
imprevisíveis e imponderáveis, devidos a aspectos subjacentes à saúde do
paciente, que o médico não conhecia, nem podia conhecer, mesmo agindo com
diligência e acuidade. Noutras palavras, seu objetivo frustrou-se pela
superveniência de causas que ele não podia prever, nem evitar".E
finalmente, às fls. 176/177 da mesma obra, conclui:
"Em recente publicação, Luís O. Andorno [5] expõe as seguintes reflexões:
‘Se bem que tenhamos participado durante algum tempo deste critério de incluir
a cirurgia plástica no campo das obrigações de resultado, um exame meditado e
profundo da questão levou-nos à conclusão de que resulta mais adequado não
fazer distinções a respeito, incluindo também a cirurgia estética no âmbito das
obrigações de meios, isto é, no campo das obrigações gerais de prudência e
diligência’.
Para o jurista platino, o comportamento da pele humana, de fundamental
importância na cirurgia plástica, revela-se imprevisível em numerosos casos.
Acrescenta que toda intervenção sobre o corpo humano é aleatória. Anota, por
fim, que a doutrina e a jurisprudência francesas têm se orientado nesse
sentido.
E arremata: “A nosso juízo, o cirurgião plástico não está obrigado a obter um
resultado satisfatório para o cliente, mas somente a empregar todas as técnicas
e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para o melhor resultado
da intervenção solicitada pelo paciente".
Em brilhante trabalho posterior, denominado Culpa Médica e Ônus da Prova [6], o
Des. Kfouri transcreve trechos do julgamento do Recurso Especial 81.101-PR [7],
onde se decidiu sobre recurso relativo à responsabilidade civil em cirurgia
plástica estética. Ali, destaca trechos extremamente elucidativos do voto
proferido pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, aqui emprestados em
virtude de sua relevância e clareza elucidativa:
"Pela própria natureza do ato cirúrgico, cientificamente igual, pouco
importando a subespecialidade, a relação entre o cirurgião e o paciente está
subordinada a uma expectativa do melhor resultado possível, tal como em
qualquer atuação terapêutica, muito embora haja possibilidade de bons ou não
muito bons resultados, mesmo na ausência de imperícia, imprudência ou
negligência, dependente de fatores alheios, assim, por exemplo, o próprio
comportamento do paciente, a reação metabólica, ainda que cercado o ato
cirúrgico de todas as cautelas possíveis, a saúde prévia do paciente, a sua
vida pregressa, a sua atitude somatopsíquica em relação ao ato cirúrgico.
Toda intervenção cirúrgica, qualquer que ela seja, pode
apresentar resultados não esperados, mesmo na ausência de erro médico. E, ainda,
há em certas técnicas consequências que podem ocorrer independentemente da
qualificação do profissional e da diligência, perícia e prudência com que
realize o ato cirúrgico.
Anote-se, nesse passo, que a literatura médica, no âmbito da cirurgia plástica,
indica, com claridade, que não é possível alcançar 100% de êxito.A mesma
Plastic and Reconstructive Surgery (vol. 95, junho de 1995, p. 1.195 a 1.204)
publica os resultados de reconstrução mamária obtidos por dois cirurgiões em
111 pacientes, mostrando complicações importantes em cerca de 20% dos casos,
observados ao longo de 18 meses.
No que se refere à plástica para redução do volume mamário (mamoplastia
redutora), o Annals of Plastic Surgery (vol. 34, 1995, p. 113 a 116) divulga os
resultados obtidos por dois cirurgiões, indicando melhora clínica satisfatória
em não mais de 74%, 81% e 88% dos casos, conforme o critério escolhido.Também
no British Journal of Plastic Surgery (vol. 48, outubro de 1995, p. 451 a 454),
foram analisadas 218 plásticas nasais (rinoplastia), observando-se não mais de
5% de complicações, mas cerca de um de cada dez pacientes necessitou de revisão
cirúrgica do procedimento realizado pela mesma instituição, e um de cada cinco
daqueles que haviam sido operados em outros centros.
J. Gérald Rheault, mostrando a realidade sob o regime legal do Canadá, que
segue o sistema do Common Law, a exceção de Quebec, que herdou as tradições do
Código Civil de Napoleão, destacou que a responsabilidade dos médicos está
limitada a uma obrigação de meios, não de resultados, na medida em que os
cirurgiões não estão obrigados a obter sempre bons resultados, mas estão sim
obrigados a fornecer competente informação e tratamento aos pacientes. Assim, a
responsabilidade do cirurgião depende da prova de ele não ter agido
prudentemente e diligentemente como um profissional razoavelmente competente
teria agido nas mesmas circunstâncias. E, em casos de cirurgia estética, esse
princípio vem sendo desafiado até a Suprema Corte por algumas pessoas que
gostariam de imputar ao cirurgião plástico uma responsabilidade de resultados e
não de meios: “Responsabilidade profissional dos médicos é limitada a uma
obrigação de meios e não de resultados. Não temos a obrigação de sempre obter
bons resultados, mas deve fornecer informações competentes e tratamentos aos
nossos pacientes. Em poucas palavras, a existência de uma falha por parte do
médico será estabelecida, se puder ser provado que ele não agiu como forma
prudente e diligente como um médico competente razoável teria, nas mesmas
circunstâncias. Em casos de atendimentos eletivos, tais como em cirurgia
estética, este princípio está sendo desafiado por todo o caminho para o Supremo
Tribunal por algumas pessoas que gostariam de nos responsabilizar não só para
os meios, mas de resultados”.
( The Canadian Journal of Plastic
Surgery, 30, 1995, via internet).
Finalmente, nesse patamar, é bom não esquecer que não se pode presumir, como
parece vem sendo admitido pela jurisprudência, que o cirurgião plástico tenha
prometido maravilhas ou que não tenha prestado as informações devidas ao
paciente, configurando o contrato de resultado certo e determinado. A só
afirmação do paciente em uma inicial de ação indenizatória não é suficiente
para acarretar a presunção de culpa do médico, invertendo-se o ônus da prova,
como no presente caso. O paciente deve provar que tal ocorreu que não recebeu
informações competentes sobre a cirurgia.
Não bastasse tal fundamentação para afastar a cirurgia estética do campo das
obrigações de resultado, o Código de Defesa do Consumidor estipulou,
expressamente, no art. 14, § 4º, verbis:
4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante
a verificação da culpa.
Ora, tal regra não separa o ato cirúrgico em obrigação de meio ou de resultado,
não destaca a cirurgia estética, nem, tampouco, explicita que destina-se a
incidir sobre a responsabilidade contratual. Com todo respeito, a interpretação
que situa a questão neste ângulo não tem lastro na lei, repetindo, apenas, a
jurisprudência anterior ao Código que enxergava a dicotomia. E não poderia
fazê-lo, sob pena de grave disparidade na própria lei que impõe ser a
responsabilidade pessoal do profissional liberal apurada mediante a verificação
da culpa.
A jurisprudência, todavia, insiste em dispensar à cirurgia estética tratamento
draconiano: ou se atinge o resultado ‘embelezamento’ ou responde o médico pela
frustração – mesmo que o cliente não melhore nem piore sua aparência inicial.
De qualquer modo, as soluções alvitradas são casuísticas e nada satisfatórias.
Em regra, se o paciente sai da cirurgia em condições piores que as ostentadas
anteriormente, o cirurgião é penalizado pelo insucesso.Decisiva, sempre, há de
ser a constatação de ter havido imperícia, imprudência ou negligência do profissional.
Ao se admitir, pura e simplesmente, que o dever assumido pelo cirurgião
plástico configura obrigação de resultado, não ocorre apenas presunção de
culpa: nem mesmo se aceita prova que o médico eventualmente produza em seu
favor. O resultado danoso firma a inarredável obrigação de indenizar.
Torna-se desinfluente a realização correta da cirurgia. Não tendo sido
alcançado o resultado – melhoramento estético – firma-se a procedência da
demanda indenizatória.
Insto equivale a afirmar que a cirurgia estética nunca sofre influência das
condições pessoais do próprio paciente (8) – insuscetíveis de avaliação prévia.
É antijurídico, por conseguinte, a pretexto de a cirurgia plástica estética ser
classificada como obrigação de resultado, inverter-se o ônus da prova. Ao
médico, em qualquer hipótese, aplica-se o regramento de responsabilidade
subjetiva – incompatível com essa inversão.
Também a doutrina Argentina se manifesta sobre o tema, através das lições de
Ricardo Rabinovich-Berkman, que vai além e levantam diversos outros
questionamentos, tais como as condições mentais do paciente que, lúcido e
capaz, se submete a cirurgia plástica em busca de corrigir o que considera um
defeito, uma característica que foge aos padrões do que considera beleza,
tratando aquele "desvio estético" como verdadeira doença.
Ignorar tais situações representa um grave desvio da realidade, incompatível com o devido processo legal, a busca da verdade e a justa análise dos procedimentos adotados.
Diz, portanto, o prof. Rabinovich-Berkman:"Em suma, no creemos que existan motivos científicos para caracterizar de um modo genérico a las oasí de las de los demás especialistas quirúrgicos. Estimamos, por el contrario, que la diversificación reside más en raíces inherentes a nuestra cultura judeo-cristiana, proclive a declamar (a menudo hipócritamente) un desprecio de la belleza física (esa "coquetería" de que hablaba el fallo antes transcripto), y a no considerar la fealdad como una forma de enfermedad.
Si la paciente se sometió a la operación plástica, es porque así lo quiso, en su evaluación de riesgos y de beneficios. Es decir, porque entendió que para volver a lucir un busto agradable (lo cual constituye un deseo más que respetable) valía la pena correr los peligros que toda intervención quirúrgica entraña. Presumir lo contrario importa considerar a la interesada una persona fatua, por no decir una tonta, sin que evidencia alguna indique que lo sea.”
Também Ricardo Luis Lorenzetti [10], afirma:
"En el campo de la cirurgía pl’’astica el profesional médico no tiene plenas seguridades de éxito en la aplicación de su ciencia, técnicas y arte sobre quien requiere su actuación, ya que no todas las reacciones del organismo son abarcables y controlables por ella. En las operaciones plásticas no cabe entender que el facultativo se obliga a lograr el resultado buscado por él y su cliente sino, más bien, a ejecutar con diligencia lo que la ciencia, la técnica y el arte médicos indican como conducente para ello, según las circunstancias de las personas, del tiempo y del lugar.
Sin perjuicio de que el cumplimiento de las obligaciones asumidas por el galeno deberán valorarse com mayor rigor, se trata de una imputación subjetiva y de un compromiso de medios y o de resultado. "
Não se pode ignorar que o paciente tem consciência dos riscos envolvidos em qualquer procedimento [11]. Eximi-lo desta responsabilidade em favor de uma falsa responsabilidade objetiva do médico (não prevista pela legislação, diga-se) é absolutamente contraproducente. O consentimento, a conduta e o comportamento do paciente são – mais que atenuantes, excludentes de responsabilidade.
Rosana Jane Magrini, em substancioso artigo doutrinário [12], conclui:"O que se exige do médico, seja qual for sua especialidade, é a prestação de serviços zelosos, atentos, conscienciosos, a utilização de recursos e métodos adequados e de agir conforme as aquisições da ciência. O que não se pode admitir, sempre com a maxima vênia, é uma corrente jurisprudencial em desalinho com a realidade moderna dos avanços da ciência médica e da ciência jurídica. "
Expõem, ainda, Antonio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza, em sua obra Instituições de Direito Médico[13], que:
"Impor à cirurgia plástica estética a pecha de obrigação de resultado é, ao nosso ver, grande preconceito, existente em tempos longínquos, além de negar o próprio sistema biológico de cada ser humano que, por vezes, se mostra rebelde, seja numa simples cauterização de uma verruga ou numa cirurgia de mama para a colocação de uma prótese, com a finalidade de aumentá-la de tamanho.
Partir da idéia de que o cirurgião plástico já tem, intrinsecamente, em caso de alegação do paciente de mau resultado, culpa no suposto evento danoso (culpa presumida) é colocar sobre seus ombros um fardo muito pesado, totalmente desvirtuado da realidade e do bom-senso".Finaliza Miguel Kfouri, em passagem de seu já referido livro Culpa Médica e Ônus da Prova [14], em definitiva opinião:
"Em qualquer hipótese, não milita, em desfavor do cirurgião plástico, nessas intervenções embelezadoras, presunção de culpa, nem tampouco se aplicam os princípios da responsabilidade sem culpa.
Por fim, as novas tendências verificadas no âmbito da prova da culpa médica, em especial a atribuição dinâmica do encargo probatório, não mais justificam que apenas ao cirurgião plástico seja aplicado tratamento diferenciado, gravoso.
Todas as especialidades cirúrgicas submetem-se ao imprevisível – conseqüência natural, já examinada, das características individuais de cada pessoa.Assim, a cirurgia plástica embelezadora há de enquadrar no figurino da verificação da culpa, a exemplo das demais especialidades médicas – arredando-se a aplicação extremada dos princípios da responsabilidade objetiva ao profissional liberal, que também se submete ao estatuto da culpa".
O que se pretende demonstrar é que, sob todos os aspectos, a cirurgia plástica é intervenção cirúrgica equiparável a todos os demais procedimentos cirúrgicos, e que as reações do organismo humano são imprevisíveis e conseqüências indesejadas podem sobrevir, ainda que toda a técnica, recursos disponíveis, prudência e perícia tenham sido empregados ao caso concreto, não se podendo, por sua vez, simplesmente culpar o médico pelo infortúnio, por ele também não desejado.
Cada corpo humano, em sua individualidade, pode apresentar somatizações, hipersensibilidades, reações diversas verdadeiramente imprevisíveis. A evolução de quadros clínicos ou patológicos, diante da intervenção médica, não é sempre igual, não obedece sempre a uma fórmula preestabelecida.Em qualquer procedimento cirúrgico, conforme comprovado por incontáveis estudos médicos, o organismo pode reagir de forma inesperada, negativa ou adversa, comprometendo o resultado.
Na prática, ainda, é de destacar que o sucesso da cirurgia plástica depende muito dos cuidados pós-operatórios tomados pelo próprio paciente, o que em parte também escapa do controle do médico.
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